Uma doce história
Conteúdo
1 – O Pasteleiro de Madrigal
2 – O Reguenga
3 – A Rua de S. Bento
4 – 1900
5 – Conseguindo que um estrangeiro pudesse jantar em Portugal sem comer dobrada, orelheira e canja
6 – A alma tirsense e o triunfo dos direitos do bom burguês
7 – O Segredo
8 – Luísa Moura
9 – Joaquim Ferreira de Moura
1 – O Pasteleiro de Madrigal
“Nesta bela alvorada de julho, vejo, da janela do meu quarto, aberta sobre a pérgula, o sol a desdobrar-se na mancha extensa de pinheiros-bravos do cerro do Carneiro e pressinto, pelo chilreio indeciso da pequenada plumosa, que os pássaros adultos ainda dormem nas ramarias das carvalheiras.” Assim se inicia, em “Rediviva”, a romanesca novela de Fabrícia Amarílis, escrita nas margens do Leça e em publicação neste jornal.
“O General Torres marcha do Porto com 5000 homens sobre Santo Tirso na noite de 25 de março de 1834, para surpreender o exército realista, 3000 homens no próprio acampamento. Às 5 horas da manhã de 26 ataca as avançadas do inimigo que depois dalguma resistência na Serra do Carneiro, abandona as posições.” Pode ler-se num monumento, mandado erigir pelo Abade Pedrosa, que assinala, às portas do cemitério municipal de Santo Tirso, o local do recontro histórico entre realistas e liberais.
A Serra do Carneiro é um acidente orográfico que milénios de convulsões da crusta terrestre colocaram no concelho de Santo Tirso. Fortunato de Almeida , esse insigne historiador, coloca o montículo no coração de uma história do século XVI que o convoca para pastelaria e sebastianismo, como se os folhados doces e as travessas de ovos em fio obumbrassem as manhãs de Portugal cativo num manancial de desejados!
Gabriel Espinosa, antigo soldado português, apareceu na vila de Madrigal, em Castela, com o intuito de exercer o singelo mester de pasteleiro. Aí era professa e reclusa D. Ana, filha bastarda de D. João da Áustria, em convento administrado pelo nacionalista frei Miguel dos Santos que urdiu uma teia ambiciosa, com o intuito cândido de libertar Portugal do primeiro dos Filipes.
Nessa tramoia, engendrada para fazer de Gabriel Espinosa simultaneamente esposo da freira e D. Sebastião, o frade pediu a ajuda a um antigo discípulo – o médico João Mendes Pacheco – que, em 1579, fora em segredo socorrer um embuçado à Serra do Carneiro, supostamente um D. Sebastião, ferido em 4 de agosto de 1578, em Alcácer-Quibir.
Estava, o Couto de Santo Tirso, fadado para línguas de gato, pão de S. Bernardo e de ló de Araruta, donde, numa manhã clarinha de julho, surgiria o encoberto jesuíta!
Para as leitoras mais curiosas, sempre direi que, tendo o médico denunciado ao governo castelhano a maquinação, o frade e o pasteleiro foram mandados enforcar, e a D. Ana confinada a quatro anos de incomunicabilidade cenobita.
A Confeitaria Moura tem uma longa tradição e uma história que nos remete, simultaneamente, para as antigas romarias e para os dias festivos mais tranquilamente alegres que, desde sempre, se celebraram em Santo Tirso: o Domingo e a Segunda-feira de Páscoa, a que os estudantes em férias e o compasso emprestavam uma vivacidade primaveril, tão perfumada como um pomar de laranjeiras. Acompanhado pelos homens das opas e iluminado pelos reflexos prateados da caldeira e do hissope, de todas as casas o pároco levava um ramo de flores e deixava outro, contrastando este sinal de reconciliação, com o estrondear dos foguetes e o tilintar estrídulo da campainha!
Acrescem as romarias circunvizinhas, que eram simples de armar: tabuleiros de doces brancos, cestos com tremoços amarelos, pipas de vinho verde, carros de lavoura a servir melancias e melões, e povo! É notícia de hebdomadário, contemporâneo do estabelecimento original da Luisinha que, na romaria da Senhora das Dores, entre outras enormidades, se consumiam mil e duzentos quilos de doce e pão de ló. Na de Santa Eufémia, mais chegada à Maia, deglutiam-se dois mil e quinhentos quilos de doce e grande porção de pão de ló – de Valongo! – que carregavam a exceder uma dúzia de carros.
Ao ser inaugurada, em 7 de julho de 1863, a passagem da “estrada real” Porto-Guimarães pelo centro da povoação tirsense – que nessa altura, oficialmente, nem “vila” era – iniciou-se um longo período de modernização da urbe e da sua definitiva libertação das peias conventuais, não deixando a terra de continuar a ser aprazível e higiénica, para onde as pessoas, não só do país como do estrangeiro, vinham tomar ares e espiritar-se.
Quem partisse da Rua do Bonjardim do Porto com destino a Guimarães, em diligência puxada por três valentes cavalos, já passaria pelo centro de Santo Tirso. Eram cinco léguas do tamanho das da Póvoa, com a descomodidade dos assentos de madeira ou palhinha numa traquitana que tinha de fazer paragens para dar descanso aos incansáveis bucéfalos. Contudo, pela Serra de S. Miguel o Anjo, único caminho, a paisagem era deslumbrante. Antes de chegar a Santo Tirso, o carro descarregava a mala do correio destinado às freguesias, nas mãos de crianças que acorriam ao toque da corneta.
A vida, até então, desenrolava-se num conjunto de lugarejos equidistantes da “Rua”, eixo central duma circunvalação de quelhas que, do Corvilho ao Tapado, volitavam o âmago do Cidenai e onde, em meados do séc. XIX, já viviam cerca de oitenta famílias. A antiga Casa da Roda, a Viela de Sebastião, os vestígios de caminhos vicinais no Alto da Feira, as Quelhas do Pêssego (eufemisticamente designada “travessa duns moinhos novos”, pertencentes à Misericórdia) e da Lagoa revelam o seu traçado e as obras particulares que as foram furtando ao uso público. Mas a “Rua”, cuja origem vem pelo menos do séc. XVIII, era mais um lugarejo – com as aspirações citadinas da trova: “A rua de Santo Tirso / Nem é vila, nem aldeia. / É uma nobre cidade / Onde o meu amor passeia” – cheio de “escolhos” como a Quelha do Pires, onde hoje está o edifício dos CTT, o campo do Santarém, o Largo das Tendas ou das Almas, a Capela de Santo António e a própria colinazinha denominada Alto da Feira que despencava, bastante mais para leste, esganando a via sacra conducente à matriz definitiva. O projeto de alargamento do Largo onde se plantou durante 28 anos a estátua do Conde, Praça do Cidenai na Rua 26 de Março, dando-lhe uma dimensão idêntica à atual, foi aprovado em sessão da Câmara de 29 de julho de 1902.
2 – O Reguenga
Não era uso na povoação de Santo Tirso chamar-se “aldeia” a qualquer lugarejo, como acontece noutras paragens. Havia, no entanto, duas aldeias reconhecidas: a aldeia da Várzea do Monte e a aldeia de Argemil. Vilalva só foi “aldeia” até que setecentos metros de estrada reta uniram o nicho ao Cidenai.
A paisagem era matizada pela omnipresença das “almuinhas” ou “quintas”, essa realidade minhota derivada de medida de dez moios de vinho – cerca de quinze pipas – composta por um terreno de vessada e semeadura, com pomar e quintal hortícola, murado ou cercado de sebes, que tem geralmente casa de habitação com portal-fronho, adega com dorna ou lagar, eira de lousa, a sobranceria de uma ventoinha de torre, corte da jumenta e água de lima e rega, própria ou de consortes, e de bica. A Quinta de Pereiras, a Quinta das Mirandas ou das Pardelinhas, o Passal e a Quinta da Lante eram as que mordiam os calcanhares e o abdómen da Vila. A Quinta da Devesa, a Quinta de Fora e do Mosteiro, a Quinta do Tapado e Lameiras e a Quinta da Lagoa pugnavam nos limites urbanos. Mais retiradas das barreiras, ficavam as Quintas de Gião, da Batalha, da Vessadinha, de Dinis de Cima e de Baixo, do Malhado, Argemil, Vilalva, Juncal, Poupa, da Trofa, Montinho, Real, Cerejeira, Ermida, Penedo e Varziela. Pardelinhas vem do facto de as morgadas serem originárias da aldeia da Paradela, Trofa. É curioso, também, o nome da Quinta da Trofa que fica além-do-rio a seguir à estação férrea, e dizem que trofa significa ou significava “limite” e “meda de palha”.
A partir do último quartel do séc. XIX, estas quintas foram alvo de um surto de registos de minas. A Vila foi objeto de “simples trabalhos de pesquisa” que originaram uma corrida à elaboração de “termos de descobrimento” e seu depósito administrativo. No lugar de Pereiras, porção do referido Passal do pároco da Vila, foi detetado metal denominado plomagina (plumbagina, ou grafite). Na quinta de Gião, de que era proprietário Francisco António Pinheiro, e seguindo-se pela herdade de António José de Sousa Azevedo no lugar da Ponte Velha, havia um extenso jazigo de cobre. No lugar de Sobregião, o mesmo Francisco Pinheiro registou um achado de ferro. Ferro e arsénico foram também alvitrados numa bouça ladeada pelo caminho que ia da Vila para o Tapado, pertença de Joaquim José do Vale. Registaram-se também os úberes garimpos do Arquinho, S. Bartolomeu, onde existe uma ermida conhecida por S. Bartolomeu da Maia, (Bouça do Pacheiro) e outros.
Uma outra realidade da geografia urbana tirsense antiga eram as lameiras, os casais e os campos. Alguns destes campos tiveram até foros de fidalguia, tendo-se prolongado no tempo em preito de memória à paisagem rústica: a Rua do Campo Novo, hoje Rua Dr. Francisco Sá Carneiro, o Campo 29 de Março ou Campo da Feira, hoje Praça Conde de S. Bento, e o Campo do Paço ou do Passo, onde, atualmente, existe um desolador jardim, animado por um cetáceo, em frente ao antigo Tribunal da Comarca, na Praça do General Humberto Delgado.
Quanto às vias de comunicação, as fastidiosas e desconfortáveis viagens em diligência por esse interior luso dentro e na mala-posta do Porto a Lisboa – cuja alternativa marítima era o embarque em Massarelos ou na Ribeira, em vapores, escunas e aleatórios brigues com vista ao alfacinha Cais das Colunas – foram substituídas pelo comboio, muito mais confiável. Em 1864, já era possível chegar de comboio de Lisboa a Gaia em menos de 14 horas; em 1875, jornadeava-se de Campanhã (Estação do Pinheiro) à Trofa e pelo Minho fora; em 1877, é inaugurada a Ponte ferroviária Dona Maria Pia evitando aos viajantes da capital o afretar de trem para atravessar o pavimento, suspenso de oito amarras, da ponte pênsil sobre o Douro da baixa Invicta, e, no último dia de 1883, passava o primeiro comboio em Santo Tirso, com destino a Vizela. Chamaram Negrelos à máquina cuja velocidade maior era de 45 quilómetros por hora. As vinte elegantes carruagens inaugurais, construídas na Bélgica, motivaram peregrinações a Lousado, onde os vagões foram montados e se encontravam expostos ao público. Estas composições possuíam uma ambulância destinada a fins assistenciais e a socorrer feridos, em caso de desastre. Sucedia, com frequência, correr a um lado a carga mal estivada provocando descarrilamento.
Mais tarde, em 14 de abril de 1884, haveria de chegar a Guimarães um comboio inaugural com 22 carruagens, puxadas pelas máquinas Vizela e Negrelos, devidamente embandeiradas. Fafe foi incluído no destino deste meio de transporte mais tarde.
De Santo Tirso à cidade-berço demorava a viagem hora e meia! À partida da composição, um toque de sineta, um apito e depois um silvo, prenunciavam o Trofa-a-Fafe, Trofa-a-Fafe, Trofa-a-Fafe! na belíssima onomatopeia dos nossos tempos de meninos, replicando as obstinações das bielas, manivelas e válvulas da velha locomotiva
O vagão-reboque (também chamado "tender") de uma locomotiva a vapor transportava o combustível e a água necessários para a alimentação da máquina.
Em outubro de 1886, foi criado um comboio expresso de Lisboa-Porto-Lisboa, com carruagem-cama, casa de banho e restaurante, e paragem em dez estações intermédias, que fazia o percurso, em um sentido, em 8 horas e 35 minutos.
Quando a primeira locomotiva transportou público até à estação de Santo Tirso, era ainda imberbe o adolescente Joaquim que viera de S. Miguel da Aves procurar ocupação na sede do concelho.
Por razões comerciais, adotaria mais um sobrenome ou apelido ou alcunha, já comum e que perdurou até aos dias de hoje em Monte Córdova, de Joaquim Ferreira Reguenga.
O seu Rei, D. Luís, o primeiro desse nome, também usou epíteto! “O Popular”!
3 – A Rua de S. Bento
Qual o preço do dinheiro, nesse venturoso ano de 1892, em que se completou o triénio das maiores festas a S. Bento levadas avante no tempo do Conde?
Tudo se vendia em “moedas” e cada moeda equivalia a 4$800 reis.
10 mil reis valiam cerca de 31.000$00 (trinta e um mil escudos) de 1999, ou seja, aproximadamente, 150 euros, com o que se podia comprar 17 gramas de ouro. As coisas evoluem de tal maneira que 17 gramas do precioso e frio metal custam, atualmente, cerca de 500 euros. Como o valor daquilo que tem realmente valor evolui!...
Uma dúzia de ovos custava, então, 130 reis!
E, por falar em reis, reinava em Portugal D. Carlos I, mas as cédulas de 20 mil reis ostentavam a efígie de D. Luís, o primeiro monarca a ser retratado, em vida, numa nota do banco emissor.
Na lavoura auferia-se um salário mensal de cerca de 5.600 reis, (80 euros) e a 200 reis também se chamava, popularmente, “dois tostões”.
O Conde de S. Bento, cuja imensa fortuna há quem ligue à exploração de balatreiros e que foi avaliada por Camilo Castelo Branco em 2 mil contos, gastava mais de cem mil euros (sete contos de reis!) numas festas a S. Bento com cinco bandas de música marciais e duas regimentais, com fogo de artifício e com a iluminação do Hospital, da Ponte sobre o Ave, da Igreja, da Escola, da torre do “Eiffel” do parque e dos marachões da Quinta do Mosteiro.
Em 1852, foi promulgado um decreto que propunha, em dez anos, estender a todo o reino o sistema métrico decimal com novos pesos e medidas, começando pelas escolas a uniformização do caos. No ano fundador da “Moura”, 1892, quatro décadas depois da legislação, como estaria a implantação do novo sistema?
Todos os anos era publicada uma letra maiúscula diferente que serviria de punção para aferidores.
Diz-nos o antigo capelão do Hospital, Padre António José Ferreira de Castro: “Os géneros vendiam-se à rasa e não a peso. A moeda corrente era de cobre: 5 reis; 10 reis; um vintém; vinte reis; de prata: meio tostão; um tostão; dois tostões; cinco tostões e dez tostões e notas em papel. Era muito corrente o termo moeda: quatro mil e oitocentos reis. “
O sistema métrico continuava ainda um manto que encobria muita cafrinice e não um meio facilitador e seguro das transações comerciais. O povo continuava a pedir açúcar ao arrátel e vinho ao quartilho e levava com o preço e a quantidade que o comerciante lhe queria entregar. Pedia e pagava 180 reis por uma canada, 2,08 litros, e levava com dois litros redondos, ou seja, na medida legal; e, com os almudes, era a mesma coisa.
A estas primeiras e introdutórias pinceladas, caracterizadoras da Vila que assistiu ao parto feliz da Confeitaria Moura, falta uma visão noturna. Como se comportava Santo Tirso a desoras?
Antes de serem distribuídos pelas ruas principais, desde o Picôto até à Igreja Matriz, os 29 lampiões de petróleo, solenemente acesos pela primeira vez em 16 de outubro de 1868, sobravam da luz bruxuleante das candeias de azeite dos nichos ou alminhas os únicos pontos luminosos na escuridão de breu da noite urbana, se desluarada. Entrecortavam estas trevas a lanterna de algum afoito obrigado a percorrer as vielas, as luminárias de uma ou outra casa que ultrapassavam as vidraças e as chumieiras de palha dos carros de bois. O rápido galopar do cavalo tardio tirando a tipoia nem chegava a espalhar um raio de luz para orientar os notívagos.
Um cidadão, apagando-se a luz pela força do vento, desviou-se do carreiro por onde o guiava a luz, tendo dado alguns passos às escuras e caído a um poço onde permaneceu durante uma noite.
Aos característicos candeeiros de petróleo, cuja carga dos depósitos dava apenas para algumas horas, e à meia dúzia de bicos de acetileno que eram um luxo do Campo Novo (Parque D. Maria II) sucedeu a iluminação pública através da luz elétrica, contratualizada em 1908, e que começou a ser objeto de ensaios, em 1913.
A Rua de S. Bento, complemento do largo do Cidenai de onde se fundou o burgo, e as outras ruas, que se foram estabelecendo e povoando o seu redor eram um formigueiro de atividades. Esta Rua, no fundo, era uma buliçosa vereda pois, no sentido descendente, iniciava-se com menos cerca de dois metros e meio de largura do que a betesga que se palmilha hoje.
Em 1884, moravam nesta rua também António Gonçalo da Silva, Augusto Ribeiro Guimarães e Gonçalo José da Silva Júnior.
Roberto Macedo, que ainda cronicava no «Jornal de Santo Thyrso» quando fui diretor, dá-nos um pitoresco retrato do bulício da ruela. Entronca-se, este apontamento, com um pequeno bosquejo da autoria do Professor Doutor Miguel Montenegro que me interpelou num semanário a propósito da Rua Faria Guimarães (também denominada Rua da Cocheira), atualmente designada Rua Monsenhor João Gonçalves da Costa.
Eram estes os moradores, a partir da alquilaria do Luís Baru – atual parqueamento do Sr. Mário Rui Moreda de Miranda e acesso à fábrica da Confeitaria de S. Bento – do Solicitador Azevedo e do advogado provisionário Freitas Costa: o talho do Claudino, o Lima Sapateiro, a taberna do mestre pedreiro Baptista, a padaria dos Pitas, a Luísa Doceira, o Restaurante Tirsense, a casa dos Santarém, a casa dos Vasconcelos, a casa do carpinteiro Anastácio, a Sapataria Camões onde vivia a Balbina e o Arlindo Feixeira, a loja de Ferragens dos Gonçalos, o Hotel do Ave, a casa familiar do Dr. Eduardo Macedo e o seu escritório.
No período em análise, as casas portuguesas ainda não tinham na porta da rua essa espécie de martelo, usado em Inglaterra, para que as visitas se fizessem anunciar “à martelada”! Na velha Albião, uma pragmática definia o significado dos estropeios.
A apensa Rua de Faria Guimarães, assim denominada por deliberação camarária de 4 de maio de 1865, além de todas as moradias que ocupavam a margem direita no sentido poente-nascente, tinha todas as casas, demolidas posteriormente, que confrontavam estas.
Dobrada a célebre esquina do “Luís”, moravam as famílias de José Andrade, de Alberto Martins, de José Pelayo, a viúva Delfina das Obras, a família de Américo Ferreira, a família do Fernandes e o proprietário do prédio da esquina, onde viveu o distinto clínico Dr. José Vieira da Silva.
Como vimos no primeiro anúncio da doçaria de Joaquim Ferreira Reguenga, publicado em maio de 1891, este estabelecimento situava-se em frente ao hospital – que fora inaugurado nesse mesmo ano – consequentemente no ângulo norte e poente da praça Visconde de S. Bento, onde alguns anos antes se andava a construir uma casa tosca, porque feita com pedra de lousa sem cunhais nem portas apilaradas.
Enquanto Joaquim manejava o palafrão, ou se dedicava a glaçar, a Luísa, com a sua primorosa espátula de marfim, arredondava, rendilhava, bordava as delicadas massas da sua cozinha.
4 – 1900
O Jornal de Santo Thyrso de 5 de abril de 1900 apresenta dois anúncios relativos às principais doçarias da Vila: a de Domingos de Jesus Gonçalves Arcos, na Praça Conde de S. Bento, e a de Joaquim Ferreira de Moura, sobre titulado “Folares”, na rua de S. Bento. Repete no dia 12.
O S. Miguel do ano de 1900 – época de azáfama para arrendatários do centro da Vila – foi marcado por várias deslocações comerciais, quase todas no mesmo sentido.
Com “subida”, na direção norte-sul, dos locais de realização das feiras, temáticas ou genéricas, foi o comércio e os mais variados serviços deslocando a sua sede no mesmo sentido ascendente, revelando que eram os mercados ou praças, e não outros polos, que ancoravam a atividade comercial. O Templo, a Fábrica, o Parque, a Cadeia, a Escola, o Rio, todos esses vetores iam perdendo a sua força, à medida que a azáfama semanal dos mercados perscrutava favos no cortiço das novas praças.
Da importante feira de louça do Prado, realizada desde tempos imemoriais no adro do cenóbio – o famoso Terreiro que era adornado de amoreiras, acácias, olaias e pelo menos uma laranjeira – e cuja notícia vem do ano de 1758, até à recente feira do gado, no parque dos Carvalhais (de que muita gente ainda se lembra) atividade mercantil que, ao ar livre, executava um vaivém constante, ao sabor de diretrizes autárquicas.
Na feira de louça grossa vendia-se alguidares, pingadeiras, travessas, vasos, pratos, tigelas, panelas, púcaros, cântaros e bilhas.
As feiras, digamos, temáticas espalhavam-se pela Vila em dia de mercado semanal: desde a feira da cinza no Picoto, a feira do pão no largo de Cidenai, à feira de todos os géneros no Alto da Feira (naquela elevação situada por cima das atuais cabines da Praça Coronel Baptista Coelho), a feira do gado, junto às grades do Parque, até à feira do peixe, dos suínos e das galinhas nos Carvalhais, na Praça Dr. Rodrigues Ferreira.
O “rossio” passou com distinção nas dificílimas provas a que o sujeitaram na década de 70 do século XIX, fixando-se, por várias décadas, a principal feira pública na Praça 29 de Março, depois chamada Praça Conselheiro Campos Henriques, a que se seguiu Praça da República e é, hoje, Praça do Conde S. Bento ou «parquinho».
Ali se vendia tudo: alfaias agrícolas (escadas, cestos, ancinhos, gigos, foices, enxadas, pás), palhoças e tamancos, compridos lódos ou lódãos, cabeçadas e jugos para os carros de bois, cebolas, batatas, panos e lenços, cestos vindimos, fueiros, gadanhos, rodas, varapaus ferrados (que não eram senão lódãos) e os largos chapéus bragueses. Melhor dizendo, na senda de Alberto Pimentel, “varapaus de lódão”, árvore mediterrânica de folha caduca!
Aqui esteve a Associação Comercial, o Quartel dos Bombeiros – em três locais distintos – a Estação Telegráfica, a sede do Ginásio Clube de Santo Tirso, o Hotel Caroço, o Tribunal, a Câmara, a Fazenda, o Grémio Artístico Tirsense e o domicílio do Conde de S. Bento.
Registamos a presença de uma figura típica nas feiras de antanho, para convocar Camilo Castelo Branco, o génio que demorava em S. Miguel de Seide do vizinho concelho de Vila Nova de Famalicão:
Em Santo Tirso, nos dias de feira, um pedinte septuagenário, conhecido por João de Seide, postava-se em frente à bandeira de letras rubras do Oliveira Barateiro, onde havia mais gente, guarda-sol encavalitado na gola do dólman, e recitava uma curiosa lengalenga:
- Júpiter era um deus omnipotente no Olimpo. Vénus era sua filha e mãe de Cupido, deus do amor. Um dia Júpiter escamou-se com Vulcano, deu-lhe um pontapé no traseiro, e deixou-lho ao lado!
Depois, o antigo jornaleiro de Famalicão, jorrava o presente do indicativo do verbo ser, em francês, e os cumprimentos de bons dias, em inglês. Dizia-se que, nestas perlengas mitológicas e poliglotas, com as quais justificava os vinténs da subsistência, fora lecionado por Camilo.
Joaquim Ferreira de Moura, homem avisado e observador, obrigado a testilhar com Domingos Arcos, do Parque, numa concorrência difícil derivada das próprias instalações, não deixou passar a primeira oportunidade que lhe sorriu.
No seu primeiro anúncio, em abril de 1885, o Arcos revela ser produtor do pão de ló de Resende. Em setembro do mesmo ano, pede à Camara alinhamento para construir uma casa no parque.
No alto da Rua 26 de Março – de que hoje é parte a Rua Sousa Trepa – havia um botequim, o melhor dos dois ou três que havia na Vila. Tinha uns espelhos de cristal nas duas paredes que davam uma impressão decente ao pobre mobiliário, local de tertúlia pela sua centralidade. Nas noites frias, o escrivão judicial Guilherme da Costa Leite atravessava a rua no fim de jantar (o jantar era às 4 horas) com a sua manta de inverno às costas. O abade Pedrosa também aparecia. Em frente, ficava a estancaria de tabacos da viúva Trepa, onde também se vendiam cautelas, a maior parte brancas.
Manuel Eduardo de Sousa transformou este referido botequim no Café Popular que, com outros quatro, eram os locais onde se tomavam dois tipos de café, o “forte” e o “de almoço”. Os outros eram o «Anjos», que abriu um restaurante acoplado ao café em fevereiro de 1888 e, em 1894, lá se montava um pequeno palco para espetáculos de teatro; o «Lusitano», que estava em trespasse em dezembro de 1888, e o «Aurora» que ficava na Praça do Conde de S. Bento (Parque) e chegou a ter, no sobrado, um denominado Club. Bebia-se o afamado “café do Solposto”! Funcionou também como pastelaria e foi percursor do catering prandial, conforme atestam uns almoços, servidos à antiga portuguesa, aos caçadores e famílias da elite tirsense que se permitiam jornada cinegética na tapada da Quinta da Ermida, tendo, na procissão do regresso à Vila e ao Club Tirsense, pelo lusco-fusco, os mais novos daquela trupe de várias dezenas de convivas entoado «A Portuguesa»!
O Café Popular da Rua 26 de Março foi inaugurado em 18 de abril de 1886. Ficava junto da antiga casa Vida, mais tarde, propriedade de Tomás Moreira Vasconcelos.
5 – Conseguindo que um estrangeiro pudesse jantar em Portugal sem comer dobrada, orelheira e canja
Este Café Popular, no local onde hoje está a Confeitaria Moura, oferecia-se como estabelecimento comercial dividido em duas secções: entrava-se, à esquerda, ficava uma mercearia e, à direita, o café, com amplo acesso da rua.
Ora Manuel Eduardo de Sousa, em finais do antepenúltimo ano do século, adquiriu uma casa no Campo 29 (atual Praça Conde de S. Bento). Em 14 de dezembro de 1899, já o Sousa se encontrava instalado com o renovado Café Popular junto ao Hotel Caroço, na loja que foi a «Mercearia Teixeira» de José Carlos de Sá Teixeira que entrou em falência em agosto de 1899.
A casa comercial do Sousa “Pelado” ainda estava em aformoseamento, mas já era muito frequentada e lar de picardias políticas entre Regeneradores e Progressistas que apimentavam a simplória bonomia tirsense.
Este Café Popular ressurgiu, já no segundo quartel do século XX, pela mão de Manuel Eduardo de Sousa Júnior, agora acoplado à Loja do Povo. Mais tarde, na década de sessenta, seria o Café Tradição, com a sua moderna esplanada onde veraneavam os “franceses”, única alternativa à Casa de Chá e ao Caroço.
No domingo de Páscoa, em 15 de abril de 1900, as atenções dos tertulianos do Campo da Feira concentraram-se todas no veículo do visconde de Pereira Machado: o primeiro carro com freio, sem cavalgaduras, para utilização na via pública (automóvel) chegou a Santo Tirso! “Caso virgem, nesta vila”, diziam os jornais.
Perante este crescendo de importância da Rua 26 de Março, Joaquim Moura e sua esposa Maria Luísa não perderam tempo e, em 7 de outubro de 1900, inauguram, na principal artéria da Vila, que hoje homenageia João Justiniano de Sousa Trepa, o Café Central, avisando os fregueses que “funcionava anexa ao café a sua antiga confeitaria que estava na Rua de S. Bento”. E de tal modo impuseram os doces e pastéis com o seu cunho que, dois anos volvidos, já ninguém falava no Café Central, mas sim, no Café Moura.
Este Café Central tinha pertencido a Tomás António Machado, falecido em janeiro de 1886. Fora casado com Rita Rosa de Jesus Machado que faleceu em novembro de 1889 sem deixar descendência.
No Jornal de Santo Thyrso de 4 de outubro de 1900, sob o título “S. Miguel – Mudanças”, são anunciadas diversas alterações de domicílio, entre as quais a do Moura.
Enquanto o Arcos anuncia em grandes parangonas “Pastéis Frescos de marisco, carne, e de doce de todas as qualidades, fabricam-se todos os domingos e dias santificados”, o Moura avisa, com reclamo mais modesto, “Pastéis de doce, carne e marisco vendem-se frescos todos os dias no café Central e feitos na confeitaria Moura”
Jornal de Santo Thyrso de 4 de outubro de 1900
O principal concorrente de Joaquim Ferreira de Moura, o espanhol Domingos de Jesus Domingues Arcos, dono da Confeitaria Serpa Pinto, começara em julho de 1899 a espraiar as vistas para sul do Parque D. Maria II, abrindo, de sociedade com o Francisco Trepa e o Abel Costa Leite, uma estancaria de tabacos na casa Trepa.
Conforme a ata da reunião camarária de 21 de janeiro de 1901, o proprietário do Moura solicitou à Câmara licença para colocar um tolde de lona, granjeando foros da melhor vitrine da Vila, onde, a par com publicidade aos seus produtos, figuraram troféus para concursos, prémios de quermesses, exposições temporárias de todos os objetos que marcaram a vida cultural, beneficente e social dos tirsenses. Mármore de Carrara, sujeita à apreciação dos tirsenses, só na montra da Moura: destinada a Poldrães, à modesta habitação que vira nascer o Conde de S. Bento, ali estivera patente uma lápide em 1935.
Saturno, divindade da primeira ordem do conselho celeste, representava-se com asas, uma ampulheta numa mão e na outra uma foice, símbolo do Tempo que é antiquíssimo, passa depressa e tudo destrói. Conta a fábula que Saturno foi liberto da tirania dos Titãs, que exigiam que os humanos os amassem, mas não ofereciam nada em troca, logrando ser expulso do Olimpo.
Esta mudança da Confeitaria Moura da Rua de S. Bento para o centro da Vila, viria a precisar da chegada dos jesuítas – pastéis de massa folhada, que não os seguidores de Loiola – para se livrar da tirania demolidora do Tempo.
No ano, em cuja data se convencionou localizar a fundação da prestigiada empresa que gira sob a denominação social «Pastelaria e Confeitaria Moura», 1892, houve uma grande crise na exportação de vinhos verdes o que originou a sua subsequente queima em massa para aguardente, através de um sistema inovador que, por queimar 750 litros por hora, contribuiu para uma momentânea obsolescência do alambique, notada na venda de usados ao desbarato.
Poderá estar relacionado com este facto o pedido de licença camarária para a aquisição de água ardente, requisitada por Joaquim Ferreira de Moura, em 27 de junho de 1892, para o seu estabelecimento situado na esquina da Rua de S. Bento, à viela que ladeava a cadeia comarcã.
6 – A alma tirsense e o triunfo dos direitos do bom burguês
Agora, que já vimos Santo Tirso de fim de século por dentro e por fora, vejamos a alma dos tirsenses e as suas roupagens, a partir daquele feliz momento em que uma multidão compacta de curiosos presentes à inauguração da estátua do Conde puderam empiteirar-se, ali a poucos metros, com o novíssimo ponche “Rei de Siam”, no botequim daquele troço da estrada real conhecido, desde tempos imemoriais, por Rua de S. Bento. Apesar de ser domingo, Joaquim Moura festejou o evento congratulante a trabalhar, reagrupando no singelo escaparate do seu estabelecimento as garrafas de Runnel de Riga, de Licor de Ginja, de Crèmes des Dames, de Lyrio Florentino, de Cognac e de Escarchado, fabricados pelo António Dias Temido de Coimbra.
Rua acima e rua abaixo pejada de povo, mastros, bandeiras, flâmulas, escudos, galhardetes e bambolins, repiques de sinos, nunca a tradicional fábrica da doceira Luísa, novel confeiteira, se vira em tamanhos entusiasmos!
O Senhor Conde já havia presenciado, em 1889, o descerramento do seu próprio busto no zimbório da Escola que doara a Santo Tirso. E lá estava, de novo, no lugar de honra da tribuna, do alto dos seus 85 anos em comemoração! As forças vivas presentes na solenidade – testemunho juntamente com uma coleção de fotografias devidas ao Kodak do amador José Correia – sentiram-no alegre e satisfeito, comovido até! Ao lado, a organização levantara um pavilhão expressamente para uso das senhoras.
O Conde de S. Bento foi um dinamizador de muitas atividades culturais, dando preferência às bandas de música com que sempre mimoseava as afamadas festas. Aos Giacomettis de Santo Tirso cabe o compensador trabalho de encontrar e divulgar as músicas que se tocavam em público nos séculos XIX e XX com temas tirsenses: “Hino do sr. visconde de S. Bento” (Secades), “Tirsense” valsa (Castilho), “Caminho de ferro de Santo Tirso”, galope, do Castilho, “Aniversário natalício – Marcha 28 de Agosto de 1884” de Castilho, “Hino da banda do visconde de S. Bento”, Castilho, a polka “No Parque” de Salvador Guimarães, “Marcha Tirsense”, J. C. Pinto Ribeiro, bolero “No Ave”, Castilho, “Bombeiro Tirsense” de Américo Ribeiro de Miranda, “Ave Maria” de António Costa, Valsa Angelina de Ernesto Guimarães, “Hino do Grémio Artístico Thyrsense” de A. C. Pinto, “Ao Soutinho” de António Augusto Correia de Abreu e um rol imenso.
Tão ufanos do seu Club (dotado de palco, bonito pano de boca e minúsculo cenário), do seu Jornal, da sua Livraria, do seu Hospital, da sua Escola, do seu Parque, do seu Rio, do seu Mosteiro, e de um número apreciável de edifícios habitacionais, situados em magníficas avenidas e praças, que faziam de Santo Tirso uma das mais belas estâncias do Minho, uma coisa envergonhava os tirsenses: a cadeia mista comarcã, esse “hotel de quatro esquinas” administrado pelo carcereiro Friães a que os jornais chamavam “pocilga infecta”!
O diretor do presídio era apenas uma peça na engrenagem correcional, gerida por uma comissão administrativa presidida pelo presidente da câmara e composta também pelo administrador do concelho, pelo provedor da Misericórdia, pelo Dr. António Carneiro de Oliveira Pacheco e por Custódio Gil dos Reis Carneiro. Mesmo assim, a cadeia era o lugar onde se aprendia a recalcitrar e pouco mais.
Em duas décadas, a vida tirsense havia evoluído da pasmaceira característica do conjunto sombrio e acanhado de azinhagas e de campos, feitorizados de sol a sol, para uma Vila alegre e organizada, onde os próceres tinham aproveitado o centro para edificar os seus palacetes de fachadas oitocentistas, cujas estruturas de cantaria conservam, ainda hoje, os cachorros de pedra, os azulejos e ladrilhos, as varandas e varandins de ferro forjado; os enterramentos deixaram de se fazer no magnífico e arruinado claustro ogival românico, mártir desse podredoiro e do revolvimento do lajedo; os barrocais e a pedreira da colina que se elevava frente ao Mosteiro, devidamente socalcados e arborizados de austrálias e camélias, deram o soberbo Parque e, até a estrada para Famalicão, com passagem pelas importantes Termas das Caldas da Saúde, deixara de ser uma intransponível fronteira, composta de precipícios, atoleiros e regatos, para ser uma via de comunhão e de progresso. A própria ponte metálica sobre o Ave – transitável desde 5 de outubro de 1883 – dera um contributo de relevo, fazendo esquecer, não uma ou duas, mas nada menos que seis pontes de pau entremeadas de barcaças e remeiros. Vilalva, Friães, Penedo e Ponte Velha foram integrados na Vila, dando-lhe, pelos muitos fogos acrescidos, foros de cidade.
Na imprensa, os leitores viram surgir dois jornais que atravessaram séculos, e a notícia ou a vida efémera de mais alguns. No século XIX, em 1882, saiu o «Jornal de Santo Thyrso», em 1883, «A Convicção», em 1886, o «Álbum do Minho», em 1892, a «Aurora Thyrsense», e, em 1898, «A Semana Thyrsense». 1892 foi o ano da primeira regata no Rio Ave, realizada em 25 de agosto e promovida pelo Monte Pio Tirsense.
O «Jornal de Santo Thyrso», veículo preferencial do empresário Joaquim Ferreira de Moura para o avigoramento publicitário do seu negócio, a partir do mês de junho do ano do estabelecimento da Confeitaria Moura, passa a ter um lay-out de seis colunas em lugar das anteriores cinco que usava desde a sua própria fundação.
Mau grado a expropriação e demolição de três infetos pardieiros, enchapelados de colmo, pertencentes a António José de Sousa Friães e a Aurélio César de Aguiar Pimenta Carneiro, para tornar alodial a penitenciária, aquele casarão branco e mal habitado, localizado na passagem obrigatória para quem, do centro da Vila, quisesse chegar ao belo templo conventual pelas Ruas de S. Bento e da Calçada, significava o que de mais sórdido se pode achar numa vila engravatada.
No final da dominical missa do dia, era costume as pessoas, que regressavam às suas casas da Rua, das Taipas, do Picoto, deixarem alguma pequena esmola nos cestos que os presos faziam descer com altos gritos pelas grades das janelas, à laia de fateixa.
7 – O Segredo
O que é certo é que a fábrica de doces de romaria, cuja semente fora lançada à terra pela incansável Maria Luísa, no Natal de 1894 já se intitulava “casa antiga e acreditada”, girava sob a designação comercial de “Confeitaria de Joaquim Ferreira de Moura – Rua de S. Bento – Santo Tirso”, fabricava pão de ló pela receita do afamado de Margaride e, com porta-aberta, vendia vinho maduro, bolachas, biscoutos, confeitos, amêndoas e… brinquedos para crianças!
Não é descabido presumir que Joaquim Moura tenha sido visita da «Casa Margaridense» e do n.º 21 da Travessa da Cedofeita do Porto onde, desde 1880, se velava o segredo do pão de ló de Margaride e se fabricava essa decantada delícia pascal.
Refira-se a hilariante e imaginária conversa telefónica de Santo Tirso para o Conselheiro Lírio Pendente (atrás deste rótulo escondia-se o nome do Conselheiro Campo Henriques, então ministro da Justiça), com foros de farsa política regeneradores/progressistas, no dealbar do século XX, que termina com uma evocação do interpelado dizendo: “– Chamou-me o Soisa das Águas para bebermos uma gasosa das que vende aí a confeitaria Moura. A gasosa era, supostamente, feita com água fresquinha da Fonte da Maria Velha.”
Uma palavra singela relativa ao bolo-rei. Com a implantação da República, os confeiteiros passaram a confecionar um bolo simples denominado “bolo nacional”. Apesar de tudo, este bolo desapareceu dos escaparates no Natal de 1915, dando lugar ao tradicional, mas mais caro, bolo-rei.
Quando, em meados de 1915, Joaquim Ferreira de Moura teve conhecimento de que estavam a descaliçar, para demolir, a prisão com que conviveu mais de um quarto de século, que sentimento experimentaria? Talvez não quisesse rememorar coisas tristes.
Desmantelada a cadeia da Comarca – que ficava no local onde, mais tarde, se edificou o velho Hotel Cidenai – os presos passaram a estar albergados no grande edifício conventual chamado “coristado”, nas antigas instalações da Administração do Concelho.
Durante o período breve de ocupação deste improvisado cárcere, os presos pediam ao guarda que os deixassem assomar à varanda, voavam daquela grande altura e evadiam-se tranquilamente pelo portão escancarado, desaguando no adro da Igreja e sumindo-se nas barbas do confiante carcereiro. “Só falta um buffet e um automóvel às ordens de suas exªs”, dizia-se em tom de chacota!
Em 1917, exigia-se a mudança imediata daquele “simulacro de cadeia”, vizinho da GNR, para um local em condições. Alegava-se, com preocupação, que o presídio provisório ficava junto da Escola Agrícola e que os alunos podiam, assim, manter um convívio imoral e deletério com os presos.
Nos domingos de manhã crepusculares do século XIX, organizado pela confraria do Santíssimo Sacramento, saía com muito esplendor o sagrado Viático aos encarcerados nas cadeias e aos entrevados. Acompanhavam a procissão inúmeros anjinhos e a banda do visconde de S. Bento, atrás da Cruz, conduzida invariavelmente pelo Lima sapateiro. O baldaquino seguravam-no os pulsos do senhor Delegado da Comarca e a naveta as mãos do senhor Juiz de direito. Ruas tapetadas de verduras e flores. A Missa aos reclusos, num altar inopinado, exigia sempre uma prática eloquente que arrancasse abundantíssimas lágrimas daqueles corações empedernidos.
Depois de administrada a Sagrada Comunhão, o juiz desta comarca – integérrimo – estregava os mandados de soltura a dois anjinhos para estes darem a liberdade a dois presos. Que cena comovente!
Em seguida à entrega dos mandados, esses presos saíam da prisão, todos contentes, pela mão dos anjinhos.
Muita gente tem alimentado o segredo da doçaria fabricada na Confeitaria Moura.
O jornalista alfacinha João Pimentel, irmão do nosso conhecido autor prolixo e camilianista Alberto Pimentel, escrevia, em 1922: “Não preciso, neste momento, de atestar mais uma vez, a minha simpatia, a minha admiração, por essa boa e honrada gente de Santo Tirso. Para ela vai toda a minha saudade, por não poder assistir a todas essas festas que aí se realizam, em que nos esquecemos, por momentos, de todas as amarguras da vida, com um bom copo, de vinho verde, dessa excelente região, acompanhado de um docinho do Moura – que só ele possui o segredo de os fazer, como ninguém, e que dá vida para resistir a uma tarde de folia!...” E, em crónica seguinte: “Nesta ocasião, tem toda a preferência esse delicioso artigo do nosso Moura, desse honrado industrial tirsense, pois foi ele quem o tornou conhecido, desde o Norte ao Sul, pela sua grande fama, visto que ninguém o sabe fazer como ele…”
“Meus caros leitores: vale a pena vir da capital a Santo Tirso, só para comer um pastelinho ou um bocado de pão de ló. É por isso que todos os lisboetas, quando aqui passam, vão sortidos daquela acreditada casa e, em Lisboa, falam, com saudades, dos célebres jesuítas, muito fresquinhos, confecionados aos sábados, pelo sr. Moura.” João Pimentel, em 1917.
Dizem de Lisboa: “Quando aí estou vou encomendá-los com um ou dois dias de antecedência, para os ter para o jantar…”
Na publicidade do século XIX (1894): “Fabrica-se pão de ló nesta antiga e acreditada confeitaria com limpeza e asseio e pela receita do afamado pão de ló de Margaride…”
A marca da casa (1913): “Cuidado! Todo o pão de ló da Confeitaria Moura leva a marca no centro da rosca” […] “para evitar confusões”.
Ele mesmo (1914): “O proprietário desta Confeitaria deseja fazer saber aos habitantes desta vila e a todos os seus habituais fregueses, que é ele mesmo, e não empregado de fora, como nos outros anos, quem confeciona o doce que vende no seu estabelecimento”.
Num bilhete imaginário, gizado pelo Alexandrino da Farmácia, de que foi mandatária a empregada de um doutor (1931): “Queira, pois, mandar apenas o seguinte: Doce de ovos, do que só o amigo sabe fabricar – 10 quilos…”
Após uma feliz e duradoura criação do anagrama de “Alexandrino” como “Adriano X Nel”, o autor deseja “uma Páscoa com muita saudinha e os estômagos limpos, com todas as válvulas a funcionar, para poderem resistir ao trabalho aturado que os seus respetivos donos lhes vão dar nos próximos dias de domingo e segunda-feira. Mesmo porque as lambarices do Moura […] não se fizeram para colecionar…”, e reconhece numas saborosas quintilhas:
“Às despesas tudo corta,
Porque a vida… é um fardo insano.
Mas na Páscoa, quem se importa
Qua a coisa caminhe torta,
Se isto é só uma vez por ano?...
[…]
Tudo anda atarefado,
Tudo trata de comprar,
Porque o pão de ló dourado,
De tanto ser procurado,
Pode, no Moura, acabar.”
8 – Luísa Moura
No mesmo tempo, João de Matos (sem jesuítas) sobrexaltava a escassez como principal característica da produção do Moura: “… o seu pão de ló é excelente e os seus pastéis são um monopólio de confeção, saborosos, fofinhos e muito afamados. § Pequena indústria, mas fina, delicada; quase um trabalho só em família, mas que ganhou nome e com justiça. § Não se fabrica melhor nem com mais arte e com mais habilidade. § Pena é que o proprietário da «Confeitaria Moura», que tem oficina própria para a sua delicada indústria, não a tenha desenvolvido conveniente-mente, e aumentado a sua produção para impedir a invasão, que se nota, principalmente na Páscoa, de fabrico muito inferior e importado nem se sabe de onde”
Leva recado, em 1924. Amigo Moura: “Toda a gente da vila e do concelho ali vai comprar uma regueifinha daquele produto nacional, tão belamente preparado por aquele nosso amigo ou mesmo pelo seu filho, que é também um exímio artista no género.”
E, com esta simplicidade, se foi criando o mito da existência de receitas guardadas a sete chaves, cuja aura, cientificamente, se resume ao asseio, desvelo, fabrico próprio, ingredientes de primeira qualidade, não só para doce fino como até para doce de segunda!
Quero crer que o verdadeiro segredo se saboreava nos casadinhos!
Joaquim Ferreira de Moura, estabelecido na zona nobre da Vila e consciente de que podia ombrear com o “serviço profuso e variado” das confeitarias Oliveira (ficava na Praça Carlos Alberto), Lisbonense (na Rua Formosa) ou Lehmann (na Praça Almeida Garrett), do Porto, abalança-se a novo desafio: destronar essas confeitarias sedeadas na invicta que eram chamadas a servir “soirées”!
Começa por levar a sua arte a uma “reunião de famílias”, promovida por Francisco Cândido Moreira da Silva no Club Tyrsense em 28 de setembro de 1901, com um serviço “abundante, variado e primoroso”; apura-se no mesmo palco deliciosamente decorado para o Carnaval, já com fama de “importante confeitaria”; apresenta-se numa sala a regurgitar de damas e cavalheiros reunidos para apreciar o violinista Moreira de Sá acompanhado ao piano por sua filha Leonilda; comparece no Sport Club Thyrsense, que dava festas animadas por músicos amadores da Vila no salão nobre do palacete de António Joaquim de Campos Miranda, e, na Páscoa de 1914, enfrenta o baile d’«O Pêto», no salão da fábrica do José Andrade, onde o “Paivinha dedilhou no teclado do pianoforte algumas valsas e polcas, e a assistência foi bem mimoseada com um ligeiro serviço de doces e vinho fino da acreditada confeitaria Moura.”
Em notícia de fevereiro de 1902, refere-se: “Como remate diremos que, para que nada faltasse a esta festa, que fez honra aos seus promotores, e à casa onde ela se realizou, houve um profuso e delicado serviço que foi fornecido pela importante confeitaria Moura.”
É de 1903 o anúncio publicado no «Jornal de Santo Thyrso» cujo fac-simile fica lateral a esta nota. Enquanto a concorrência alardeia preços “sempre baratos”, com “grandes reduções” e “resumidos”, Joaquim Moura elege preferencialmente a qualidade, e, no tocante a preços, diz que são “muito razoáveis”, “convidativos” e, embarcando na nomenclatura da moda, “sem competência”!
Na consolidação do seu negócio, a Confeitaria Moura enfrentou a concorrência de várias casas da especialidade fundadas no centro de Santo Tirso: Confeitaria Cavadas de Mário Pinto Guimarães, Francisco da Silva Abreu, depositário dum doce fabricado em Famalicão, na confeitaria de Conceição Guedes, e que, em 1893, já anunciava que o pão de ló era pelo processo de Margaride, Abílio Ferreira de Moura, José Eduardo de Sousa e Confeitaria de S. Bento, de Costa & Miranda Lda. Mas o seu verdadeiro rival era o espanhol Domingos de Jesus Domingues Arcos, dono de uma completa e bem-sucedida unidade comercial, com publicidade agressiva, fundada em 1878. Este estabelecimento, que ficava no Parque e foi estancaria de tabaco, também adotou no nome «Confeitaria Serpa Pinto», quando o ultimato britânico de 1890 concitou a simpatia para com os exploradores portugueses de África.
Como curiosidade, referencie-se que este Domingos Arcos era cunhado do Manuel Oliveira “Sortes”, assim apelidado por se dedicar, nas horas que as suas ocupações permitiam, a vender bilhetes de lotaria.
Dona Luísa Moura foi o alfobre onde germinaram 26 lustros de doces emoções.
Filha dos confeiteiros António Santos e Rita Pereira, natural de Vizela, chegou a Santo Tirso com fragrâncias de bolinhol no olhar e vontade indómita de vencer nas mãos de esposa e mãe.
Marcou presença em todas as romarias que se realizavam à volta do seu lar: Valinhas, S. Bartolomeu, Nossa Senhora da Assunção, Senhora das Dores e Santa Eufémia.
Quando, em quadra pascal, a casa «Domingos Arcos», do Parque, começou a sentir o perigo da concorrência que se agigantava com a garra e o dinamismo de Dona Luísa, apressou-se a lançar uma veemente «lembrança aos esquecidos», enaltecendo o seu “pão de ló de Araruta e do outro do costume”!
A constante presença da esposa de Joaquim Moura, com pão de ló e melindres, nas romarias de S. Bartolomeu da Maia e de Valinhas, esta em honra de Nossa Senhora da Misericórdia, era acontecimento de relevo: “Em volta dos troncos das árvores estão amarrados muitos cavalos, burros e bois; aqui pessoas agrupadas e sentadas no chão comem e bebem; ali dança-se e canta-se alegremente; acolá estão as doceiras, os carros das melancias e as pipas de vinho já calçadas porque o líquido está a dar o resto.”
Luísa chegou a ser mordoma da romaria de S. Bartolomeu e da Irmandade de Nossa Senhora da Assunção, cuja capela se erigiu na colina fronteira à vila, na freguesia de Monte Córdova.
9 – Joaquim Ferreira de Moura
Ainda jovem, o futuro trabalhador oportuno e cidadão exemplar Joaquim Ferreira de Moura, no ano da salvação humana de 1885, dirigiu-se ao Café dos Anjos para tratar do “aluguer” de uma casa que o carcereiro Sousa Friães anunciara “na Rua de S. Bento desta vila, uma loja com três portas e um quarto espaçoso muito própria para qualquer negócio ou mesmo para vivenda.” Esta publicidade imobiliária surgira pela primeira vez no «Jornal de Santo Thyrso» de 20 de março de 1884.
Abandonou a pequena casa onde nascera e cuja posse manteria por algumas décadas, num terreno que ficava em nível inferior ao Parque, e instalou-se na proximidade da cadeia comarcã.
A pretexto de simples curiosidade, refira-se que a cadeia da comarca tinha um compartimento incomunicável, conhecido por “segredo”. Era a condenação que os presos queriam pois, retalhado o cobertor em tiras, abriam o estuque do teto, levantavam o telhado e guindavam-se para a rua… onde ansiavam refazer-se de possível contusão do salto.
No segundo quartel do século XX, a Câmara de Santo Tirso completou o trabalho de ajardinamento de toda a área fronteira ao templo beneditino e da entrada da vila pelo lado da estação do caminho de ferro, num arranjo paisagístico que viria a denominar-se Jardins Ribeiro de Miranda. O Município comprara, em 1928, o “Campo da Granja” a José da Silva Reis, de Sequeirô, ficando na posse plena das Fontes do Terreiro ou dos cãezinhos que lhe estavam justapostas. Em 1884, depois de inutilizada a calçada da ponte de pau para o adro, já se falava na necessidade de a Câmara adquirir o terreno compreendido entre a nova Rua do Progresso e o referido adro, para evitar a construção de alguma casa que viesse a prejudicar as vistas surpreendentes da igreja e da formosa fachada das Casas dos Tribunais. Mas só em 1930 o município adquiriu o prédio de Joaquim Ferreira de Moura!
Não foi o caso imediato, mas alguns jardins públicos eram fechados – estou a lembrar-me do Jardim de S. Lázaro, na cidade do Porto. A determinada hora, o guarda do jardim soava uma sineta, anunciando que dentro de algum tempo o jardim seria encerrado!
O empresário de confeitaria participou na aquisição dos instrumentos e fardamentos da Banda Artística Tirsense, colaborou também com a Irmandade e Santa Casa da Misericórdia de Santo Tirso, com as comissões organizadoras das festas, e contribuiu monetariamente para os prémios atribuídos nas provas de instrução militar que constavam das disciplinas de Tática, Ginástica, Canto Coral, Educação Cívica e Teoria Preliminar de Tiro. O seu filho Guilherme, jovem instruendo, foi um dos premiados nas categorias de Canto Coral e de Tática.
Na sessão de 17 de fevereiro de 1914, Joaquim Ferreira de Moura entrou para sócio da Associação Comercial e Industrial de Santo Tirso, que havia sido fundada em 8 de janeiro desse mesmo ano, e esteve presente, na Palmeira, no dia 15 de agosto de 1917, na inauguração da Escola Movel Agrícola «Sousa Cruz», onde conheceu o economista, agricultor e jornalista Bento Carqueja, a cuja iniciativa se ficou a dever tal escola.
Joaquim Ferreira de Moura foi nomeado membro efetivo da Junta dos Repartidores da Contribuição Industrial para o ano de 1903 – já o fora em 1902 – e vogal substituto da Comissão de Recenseamento Militar de 1911.
Como vimos em anteriores números deste folhetim, a partir da Páscoa de 1902, a confeitaria Moura passa a ser o fornecedor habitual do serviço dos bailes do Club Thyrsense onde dançavam cerca de cinquenta pares animados pelos músicos Bernardino Valentim Moreira de Sá e sua filha.
Joaquim Moura teve uma breve incursão na política, pois, nas eleições camarárias e de procuradores à Junta Geral do Distrito de 30 de novembro de 1913, concorreu às camarárias na segunda lista, como substituto. Já na vigência deste novo regime, tomou parte no banquete comemorativo do 8º aniversário do movimento militar de 28 de Maio de 1926, realizado no Hotel Cidenai, a que compareceram, entre outros, Luís Trepa, Eduardo Miranda, José Lemos, Alberto Félix, José Pereira de Faria, Manuel Eduardo de Sousa, David Assoreira, Alexandre Lima Carneiro, Abel Figueiredo, Joaquim Sineiro e José Santarém.
Joaquim Moura nunca deixou de socorrer as Associações de Bombeiros da Vila.
Nos anos iniciais do século XX, realizavam-se espetáculos no teatro Chalet cujos bilhetes eram vendidos nos cafés Moura e Popular.
ANTONIO JORGE
Enviado por ANTONIO JORGE em 17/06/2025