As setas e o “lá vem um!”
Em Santo Tirso é bem difícil um contista referir-se a personagens sem nomear uma alcunha. Folheando ensaios etnográficos verificar-se-á que grande parte dos apelidos são comuns a todas as terras. Mas eu recuso-me a admitir que os nossos mais ternos se repliquem algures. Quem, senão um tirsense, se lembraria de chamar a alguém “Sapatinho Tau-tau” ou “Bilinho Picònero”?
Havia também, naqueles tempos em que o sonho não era pervertido pela ridícula viagem de circum-navegação virtual do “Magalhães del cano”, as maltas: a “malta da rua da cadeia”, a “malta dos carvalhais”, a “malta do rio das baías”…
O Zé Rodrigo, o Jorge Fontão, o Vá-vá, o Pinheirinho, o Miro (Claudemiro) e o Carlos Moreno – que vinha lá de para além Vilalva – faziam parte da “malta da Lagoa”.
O Carlos trazia um arco que era uma “categoria”! E as setas? Motivo da inveja dos colegas de tropelias.
Surgiram, naquele dia, de calção e boné, com as bocas pretejadas das amoras maduras e gordas como medronhos, arrancadas às silvas das ribas marginais de um caminho.
Terminado o rancho de frutos silvestres, palrando como badegos, saltavam os barrocais atrás das lagartixas que se meneavam pelas lajes soalheiras, incólumes às rombudas setas.
No meio de muitas “fitas” de índios e cow-boys, andava em reposição sensacional pelos cinemas «A Flecha de Robin dos Bosques», com Robert Clarke. Ainda bem que as crianças se não lembravam de imitar o «José do Telhado» ou «O Homem da Mascarilha». E, quem é que se lembraria de trazer para os folguedos o Joselito, o Cantinflas ou o Abbot e Costelo?
Tudo era Robin dos Bosques, naquele tempo!
O Tirsense futebol, com “pelado” ali juntinho, havia descido de divisão mal servido pelos veteranos Rechimba e Carriço – no dizer do repórter – sendo vedetas os regressados Birílio, o Carlos e o jovem David, guarda-redes em princípio de carreira. Quem estava em vias de ser repescado era Ricardo Areal, antigo sócio benemérito e predestinado a salvar o Clube das garras do Paredes, do Leça, do Freamunde, do Varzim, do Leverense, do Penafiel, do vizinho Aves, do Avintes, do Académico… Mas era necessário readmiti-lo como sócio! O FCT havia ganho ao Leça, logo era urgente a aquisição de reforços, não havendo dinheiro para luvas!
Para se fazer uma ideia da Vila, registe-se que, nesse tempo, foi inaugurado o posto de gasolina da Sacor, no Picôto, a casa Oliva fazia concorrência à Singer (Cose melhor!), não havia ainda guerra colonial, contudo estavam a regressar os militares daquela velha Goa cujos sinos dobravam a finados nas rádios de nossos lares.
As ruas da Vila eram atravessadas por procissões em que se incorporava a JOC (masculina e feminina), pelo cortejo do enterro do ano velho e pelo cortejo de oferendas em benefício do Hospital em que os carros desfilavam “às centenas” com a sua alegre chiada exibindo produtos industriais, agrícolas e silvícolas e – o que eu admirava tanto – as ogivas de belas notas, quase todas de vinte, algumas de cinquenta e uma ou outra de cem escudos, de friso esverdeado e fundo a refulgir dourado!
Quem quisesse ser figurante no enterro do ano velho deveria inscrever-se atempadamente no Eduardo Brasão, diariamente até às nove da noite.
As tardes de domingo ganhavam cor pela voz, a um tempo tonitruante e cana-rachada, do pregoeiro dos leilões do Fua que ribombava por todo o vale onde se aninhava a vila de Santo Tirso. – Cinco escudos, uma! Cinco escudos, duas…
Nas segundas-feiras pascais, a edilidade contratava a banda de música da Trofa e o Rancho Típico de Santa Maria da Reguenga.
Exilado o bispo D. António Ferreira Gomes, quem “presidia” às cerimónias oficiais era D. Gabriel de Sousa, abade de Singeverga; com uma cadência razoável, partiam caravanas de camionetas em excursões rumando as “santas” Alexandrina de Balasar e Eufémia de Mouquim.
Na RTP, bebé de tenra idade, iniciava o engenheiro Sousa Veloso a imorredoura TV Rural.
Havia Creche, Patronato com posto escolar e internato, que a Associação Católica de Protecção aos Pobres geria, coadjuvada pelas Irmãs de S. Vicente de Paulo; a Mocidade Portuguesa Feminina expunha, no Natal, berços e enxovais para os pobres, e as Noelistas também organizavam a sua beneficente venda de Natal.
As Finanças e a Tesouraria da Fazenda sediavam-se ao fundo da rua de S. Bento e, bem perto, a Casa Viana servia tripas à portuguesa aos domingos e segundas-feiras, “saborosas como as servia a antiga Pensão Viana”. Debaixo do Mercado começava a mercadejar a Casa Minho e Douro, de Fernando Silva e, na praça do futuro Tribunal, a padaria Valonguense abria as suas portas com a fama das regueifas de Valongo. O café Olímpico (do Matos e do Polónia) sofreu obras passando a ser “um bom café citadino”.
O odontólogo Birílio aplicava placas esqueléticas feitas com material moderno importado do estrangeiro; Agostinho Francisco Cadilhe, pai do famoso político social-democrata, era chefe da secretaria da Câmara de Santo Tirso; circulava a promessa da construção de uma fábrica de tecidos na quinta da Lante.
Na escola primária, o sr. Rocha, o sr. Portela e o sr. Teixeira, sabendo as pechas da puerícia e do começo da adolescência, seguiam um pouco o sistema da pancadaria, e feriam as cabeças mais empedernidas com o fuzil da cana pelas orelhas tangentes e as memórias relapsas pelas palmatoadas chisnosas.
Alguns rapazolas ganhavam, na roda do ano, grosas e grosas de botões, que iam vender à adela sra. Emilia «Pata» ou à brunideira sra. Palmira «Brava». Diziam.
Jogavam os punhados de botões nos recantos do pátio térreo da escola onde se minavam buracos, para os mais habilidosos encovarem com unha certeira, arremessando a chapola de grande distância.
Ali em baixo, na rua S. João de Brito, onde o construtor civil José Pereira Campos tem a sede da sua firma, os drs. Maurício, Guerra e Palhares aliançavam-se em laboratório de análises clínicas. José Pereira Campos construíra o edifício e armazéns do Grémio da Lavoura, o do Sindicato Nacional dos Operários da Indústria Têxtil e andava a edificar, nas novas avenidas, as casas e armazéns de Ângelo Martins e Domingos Amaro.
O mais eram charcos onde coaxavam rãs e pinhais onde grasnavam as pegas altivas.
Era o tempo do “lá vem um”! De longe a longe passava, na avenida de S. Rosendo, ou em qualquer outra rua da Vila, um Fiat 600, um «joaninha», um Simca 1000, um Morris, um Vauxhall, um Renault 4v, a «arrastadeira» do Juca, o Dodge da «praça», um Volvo «marreco», a «pão-de-forma» dos “vermelhos” com sinistrados para a urgência…
Um dos petizes – o Vá-vá – esmadrigou-se do bando, impelido por uma guinada própria da traquinice, deu uma corrida desvairada na direcção da casa de pasto Melo, sendo colhido por um dos raríssimos automóveis que circulavam.
Fugia à investida do Carlos Moreno que, ao longe, lhe apontava a frecha feroz prestes a libertar-se do arco retesado, ameaçador.
Arco para um lado, flechas para outro, ali jazia meio inanimado o contuso rapaz, em circunstância que exigia socorro urgente.
Sai da Lagoa a Sra. Emília «Mouca», incólume aos rebuçados de avenca para a rouquidão mas muito atreita às malandragens, esbracejando cacarejava:
– As setas! São as setas! As setas!
Não deu o mínimo desvelo ou atenção ao desgraçado que foi colhido pelo monstro se-movente.
– As setas! São as setas! As setas! – regougava.
O afanicado miúdo do arco e flecha lá se restabeleceu, perante o susto dos companheiros e o precoce sentimento de pouca humanidade da surgida habitante da Lagoa.
A Sra. Emília «Mouca», recolhendo à viela da Lagoa cosida ao muro do quintal do Pimenta e de costas voltadas para o rapazio que a mimava com chistes e selvagens caretas, ainda gesticulava:
– Abre-te-núncio! Que estardalhos! Dar-lhes nas ventas para trás, a eles todos! São as setas! As setas! As setas!...
ANTONIO JORGE
Enviado por ANTONIO JORGE em 09/11/2010
Alterado em 18/11/2010