A. Jorge Ribeiro
Um homem, quando adrega de apaixonar-se, ou mar ou terra.
Textos
Vós que habitais o mundo e sois crianças
Era uma vez duas sementes de rosa. Uma chamava-se Eurica outra Amendiga. Estiveram muito tempo afundadas no colo sumoso da mãe-flor até que um dia uma rabanada de vento as elevou no ar num desandar entontecedor, num rodopio girão como as meninas das valsas de Schubert.
E numa viração em que a corrente do vendaval se dividiu, as irmãs apartaram-se gemendo adeusinhos, entontecidas e aparentemente felizes.
Eurica, menos ourada agora devido ao enfraquecer do vento, deu de pensar chorando na sua irmã Amendiga até que um encontrão a fez sentir-se em terra fofa. Ainda lançou um olhar em redor, mas gostando da humosidade do jardim logrou ser enterrada por uma gota de água fresca. Amendiga, no que lhe tocava, tinha sido menos venturosa: o seu corpo pequenino, ferido por espinhos e ortigas, tombou sobre uma laje e precipitou-se até um interstício saibroso.
E o tempo rodou.
Na Primavera, quando Deus fez parar os frios e as chuvas para dar ao sol e ao verde a sua quota na criação, nasceram as rosas Euria e Amendiga.
A primeira entre jasmins, lírios e outros primos, no horto dum conde Orense. A segunda entre silvas e grama nas ruínas dum casebre.
Eram a poesia de Deus, dos ricos e dos pobres!
Eurica, folgadez de nome e de destino, tinha amigos, humidade, carinho, perfume e cor, tudo ali ao pé; tornou-se dengosa, enfraqueceu.
Amendiga teve de cavar fundo para encontrar azoto, teve de lutar com as ervas daninhas da vizinhança para ver a luz do Estio e por isso rebentou forte, calejada, rugosa, mas sadia e meiga, linda como as mãos dum trabalhador honrado e pura como o peito duma pomba sel-vagem.
Uma bela manhã a engomadeira do senhor conde, a trautear minuetes, cortou rés o pezinho frágil e preguiçoso de Eurica e colocou a decepada, a escorrer seiva, numa saleta barulhenta. A morte caminhava cavernosa, e Eurica, débil demais para estrebuchar, feneceu.
Amendiga perpetuou-se pelos séculos e ainda hoje é o encanto dum poeta meu amigo que a vai beijar quando o sol, num arranque extremo, se derrete em sangue e é vencido pela noite.
ANTONIO JORGE
Enviado por ANTONIO JORGE em 27/10/2009
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