A. Jorge Ribeiro
Honra e proveito não cabem num saco
Meu Diário
25/06/2010 13h22
Zeferino Moreira Coelho
 
Zeferino Moreira Coelho, «O Fiandeiro» e as greves de 1910
 
Estão fulos como corças
Esses burgueses danados
Por verem os esfomeados
Reunirem suas forças
 
    As grandes fábricas têxteis «Fiação e Tecidos de Santo Tirso» e «Fiação, Tecidos e Tinturaria de Riba d’Ave» – por cá chamada fábrica de Sant’Ana – foram fundadas em 1896, ano das bodas de ouro da «Fábrica de Fiação e Tecidos do Rio Vizela». 
    Há cem anos estas fábricas, no seu conjunto, empregavam cerca de quatro mil e quinhentos operários.
    Os trabalhadores destas empresas, que não dispunham de segurança social pelas razões já indicadas em anterior crónica (21-5-2010), trabalhavam em condições sub-humanas e, até, anacrónicas.
    Curiosamente, a instalação da «caixa» numa empresa era uma ameaça para as associações operárias. Com efeito, começando os operários a descontar para uma instituição mutualista, deixavam de pagar as quotas ao “sindicato”.
    De Maio a Julho de 1910, o vale do Ave foi sacudido por um amplo movimento de greves e comícios, que paralisou treze das mais importantes unidades produtivas.
    Sinteticamente, pode escrever-se que as queixas dos dirigentes da luta operária tinham um alvo – os quadros superiores das fábricas – e pretendiam colocar em causa a severidade disciplinar com castigos corporais, os obstáculos levantados ao associativismo e à acção operária, as ilegalidades cometidas na organização do trabalho, nomeadamente quanto a horários e emprego de crianças e mulheres.
    Num primeiro comício da classe mecânica, realizado em Maio em S. Miguel das Aves, na Tojela, com pouca afluência de operários, foi recordado que a Fábrica de Santo Tirso trabalhava em dois turnos: um das seis da manhã às oito da noite, e outro das oito da noite às seis da manhã, sendo o trabalho nocturno remunerado ao mesmo preço do trabalho diurno.
    – Consta que em Santo Tirso o regime de trabalho é idêntico ao que se vivia sob o imperador Diocleciano, ou sob Wang Mang! – ironizou o Santeiro, da fábrica de Rio Vizela. Mas na “roça de Negrelos” trabalha-se das cinco da manhã às seis e meia da tarde e os operários da noite ganham menos que os de dia!
    – Nem mais – confirmou o Ratto, passando a comentar as pojeias de tostões que os servidos ratinhavam: – os de dia ganham mil e quinhentos reis à quinzena, enquanto os da noite ganham 500, 800 e, no máximo mil reis!
    Obviamente, a exiguidade das remunerações também foi tema deste comício avense. Uma dúzia de ovos custava, no mercado semanal, 140 reis. Mil reis dava para comprar pouco mais de 7 dúzias de ovos, que hoje custam 21 euros. Um grama de ouro valia, em 1910, 565 reis. Não andará muito errado quem disser que, há cem anos, um operário fabril auferia entre 20 e 65 euros por mês... trabalhando 70 horas por semana! Atendendo à desvalorização actual do euro face ao ouro, poderíamos, até, cotar a mão-de-obra de 1910 no dobro destes valores, o que continuava a ser irrisório, situando-se, no máximo, em 25 contos mensais... um maço de cigarros por dia!
    Repentinamente, a Barbearia Adães, na Rua Sousa Trepa, saltou para ribalta: ali se vendia o jornal associativo “O Fiandeiro”, fundado no Porto em 1897 sob a responsabilidade do editor Manuel Gomes da Silva. Por ironia, nem sequer se lia, neste mestre “Fígaro”, o jornal «Duas Palavras» que, em Maio de 1910, ia no nº 16, e se destinava a defender “O Barbeiro do Norte”!
    Dizia-se até, entre uma e outra escanhoadela:
    – O Fiandeiro mete mais medo que o cometa! – dito jocoso que envolvia o cometa Haley, estonteado pelas graças do planeta Terra. 
   
    Cabe aqui um parêntesis sobre o aparecimento de «O Fiandeiro». Trata-se do segundo mais antigo representante da imprensa operária em Portugal, secundando o «Jornal da Associação Fraternal dos Fabricantes de Tecidos e Artes Correlativas», estampado em 1858. Há um estudo que refere uma publicação de «O Fiandeiro» em 1891, mas esta informação não deve estar correcta, pois Artur Duarte Sousa Reis, amanuense da Biblioteca Pública Municipal do Porto desde 1882, editou um «Catálogo de Jornais do Porto», em 1896, não o mencionando.

   
    Em 25 de Novembro de 1908, as fábricas de Santo Tirso e de Negrelos tinham recebido a visita do monarca, el-rei D. Manuel II, e a fábrica do Rio Vizela contava, desde Agosto de 1909, com a preciosa ajuda da força motriz eléctrica, oriunda de um açude fundeado perto de Caniços.

    Em toda esta crise laboral, culminada em pleno surgimento do anarco-sindicalismo em Portugal, emergiu a figura de uma individualidade e de “uma associação socialista do Porto”, como timidamente referiam, em Santo Tirso, Trepas e Lemos.
    A «Semana Tirsense», há cem anos, sublinha: “há muito que se vinha fermentando a indignação em certos espíritos, num jornal intitulado «Fiandeiro», que se publica quinzenalmente no Porto, da propriedade de alguns empregados da fábrica de Negrelos, que haviam sido expulsos”. E ao segundo comício avense refere que “assistiram, como oradores, vários membros de uma associação socialista do Porto.”
    A imprensa tirsense viu sempre estes movimentos sociais como desarranjos nos intestinos dos diversos estabelecimentos industriais e, sobretudo, dos seus directores. Não teve grande preocupação com as condições de trabalho e os atropelos ao decreto de 14 de Abril de 1891. A uma inquirição feita em Santo Tirso, um artesão respondeu:   
    – A minha filha, quando entrou para a fábrica, ainda lhe faltavam uns mesicos…” (para os 12 anos). Ainda que não tenham idade, a gente arranja com o sr. abade!
    A necessidade e a miséria anestesiavam a fama do famoso chicote do fiscal Fumega!
 
    Em tempos de “alcoolismo, suicídio, esfalfamento físico, tuberculose e prostituição” sobressaiu um tirsense, nesta luta pelo direito, pela razão e pela humanidade, com uma divisa única, a de lutar contra o estado de miséria crescente dos operários destes centros fabris. Zeferino Moreira Coelho. 
 
    Zeferino Moreira Coelho, menos contundente que outro tirsense da altura, Heliodoro Salgado, teve muita influência na luta pela implementação da legislação operária, grandemente postergada num meio de crescente predomínio de capatazes azevieiros dos “servidos”.
    Lido em Augustin Hamon, Faure e Merlino, percebeu que em nada favoreciam os trabalhadores e a sua luta, as instantes contendas ideológicas entre o socialismo e o sindicalismo. Acompanhou com interesse a luta académica de 1907, admirando Campos Lima e Pinto Quartim.
    Graças a ele, foram implantadas medidas de segurança em torno dos volantes, correias de transmissão e fossos; compreendeu que, com a utilização de certas práticas, poderiam evitar-se os constantes acidentes com lançadeiras que saltavam pelos ares; lutou para que, dos doze aos catorze anos, os menores não trabalhassem mais de seis horas por dia, e para que as mulheres apenas voltassem ao trabalho, ou fossem admitidas, volvidas quatro semanas após o parto.
    Pode dizer-se que saiu vitorioso de algumas batalhas, nomeadamente pelas associações operárias, salários melhores, contratos e regulamentação do trabalho.
    Mas uma delas não conseguiu levar avante: estava legislada a instalação, nos centros industriais mais importantes do país, de Tribunais de árbitros-avindores, para promover a conciliação ou a arbitragem em controvérsias entre patrões e empregados. Apenas se instalou um único destes tribunais, em Lisboa, em 18 de Maio de 1893.
    Em 1 de Abril de 1910, o jornal «O Fiandeiro» anuncia: Zeferino Coelho foi expulso da fábrica de Negrelos “pelo horrendo e nefando crime de escrever para este jornal”. Perante tal medida retaliatória, ele recebeu o apoio de uma manifestação de 400 operários. Alfredo da Silva Araújo, empregado superior da fábrica sexagenária, foi contrariado por funcionários que não quiseram assinar um protesto contra o jornal.
 
    Toda esta actividade jornalística, que incomodou os políticos, a intelectualidade e os grandes empresários do Vale do Ave, foi iniciada em Fevereiro de 1910 e teve o seu fastígio nos meses de Maio, Junho e Julho do mesmo ano, acompanhando o movimento grevista.
    Os operários revolucionários eram: Zeferino Moreira, Lino, Guimarães, Santeiro, Couto, Artur, a Luzia, o Monteiro, o Ratto, o Augusto, o Ramos, o Salgado, o Delfim, o Carambola e o Xina.
    Todos eles achavam o conde de Vizela um homem bom, propalando:
    – S. Ex.ª não tem conhecimento de muitas ocorrências que ali se dão!
 
    Expulso da fábrica do Rio Vizela, Zeferino Coelho foi acompanhado por Adelino Martins Pinheiro, David António da Silva Moreira e João da Silva Guedes, alegadamente por promoverem uma subscrição a favor do jornalista. O David era proprietário de um estabelecimento de mercearia e fazendas, em Rebordões, onde era vendido o «Fiandeiro»
    Zeferino Moreira Coelho propôs-se publicar uma “Novela da Vida Operária” intitulada “Os Mártires do Trabalho”, anunciada como interessante e emocionante; intitulou artigos jornalísticos “Fala um Perseguido”, e escreveu uma “carta aberta ao conde de Vizela”.
    O «Fiandeiro», que fora editado na rua da Cancela Velha e composto na rua do Almada, na cooperativa «Casa do Povo Portuense», termina a sua publicação em 1915, sendo seu director Aurélio Pinto da Fonseca. 
 
    Da biografia de Zeferino Coelho, que belamente empunhou o esmerilhão da pena, consta também, a sua eleição, em 14 de Agosto de 1910, para presidente da filial de Burgães da Associação de Operários Fiandeiros; em 5 de Junho do mesmo ano passa a ser o Director-responsável do jornal «Fiandeiro». Foi também jornalista de «O Primeiro de Janeiro», onde noticiou, como correspondente, os mais importantes factos da história tirsense, até 1939. 
    
    Cabe aqui um agradecimento à Senhora Governadora Civil do Porto, Dra. Isabel Santos, bisneta de Zeferino Moreira Coelho, a quem se deve valiosa informação sobre este vulto tirsense da República e dos Direitos Humanos.   
 
 
Publicado por ANTONIO JORGE
em 25/06/2010 às 13h22
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